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O Código de Napoleão e o Ensino do Direito em Norberto Bobbio: reflexões.
26/06/2015 | 17h00
O Código de Napoleão e o Ensino do Direito em Norberto Bobbio: reflexões.
Por Renato Cassio Soares de Barros
Diante do objeto de pesquisa do “Grupo de Pesquisa Educação e Direito na Sociedade Contemporânea”, da UFSCar, do qual pertenço, este trabalho tem como objetivo análise bibliográfico sobre o Capítulo III do livro “O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito ”, de Norberto Bobbio, cujo título é “O Código de Napoleão e as Origens do Positivismo Jurídico na França”, para reflexão sobre o positivismo jurídico e o Ensino do Direito.
Bobbio aborda a entrada em vigor do Código de Napoleão, na França, em 1804, com repercussão considerável no pensamento jurídico moderno e contemporâneo de sua época, repercussão que motivou o pensamento do direito em termos de codificação, como se o direito devesse estar encerrado num código, o que deveria ser extinto da atitude mental, considerando que os jovens que iniciassem os estudos jurídicos deveriam procurar de libertar dessa atitude.
Com a observação de que a idéia de codificação surgiu por conta do pensamento iluminista, na segunda metade do Século XVIII, não sendo comum a todo o mundo e a todos os países civilizados, vez que ausente a codificação nos países anglo-saxônicos, a codificação representava uma experiência jurídica dos dois últimos séculos, levando em conta a sua época, típica daquela Europa continental, influenciando a legislação e o pensamento jurídico.
O projeto de codificação tem origem na idéia de que possa existir um legislador universal e a necessidade de um direito simples e unitário, notadamente porque, na sociedade francesa, não havia um único ordenamento jurídico civil, penal e processual, mas uma multiplicidade de direitos territorialmente limitados, em geral dividido em duas partes, a setentrional, onde estavam vigentes os costumes locais ‘(droit coutumier’), e a meridional, onde vigorava o direito comum romano (‘droit écrit). Um direito simples e unitário deveria ser instrumento a ser apresentado pela ciência da legislação.
A ciência da legislação interrogaria a natureza do homem, estabeleceria quais eram as leis universais e imutáveis com o objetivo de regular a conduta humana. Para os iluministas o verdadeiro direito estava fundado na natureza das coisas conhecíveis pela razão humana.
Nas considerações de Bobbio os juristas da Revolução Francesa se inspiraram nas concepções se Rousseau e iluministas em geral se propuseram a eliminar o acúmulo de normas jurídicas produzidas pelo desenvolvimento histórico. Estar-se ia a instaurar no seu lugar um direito fundado na natureza e adaptado às exigências universais humanas, porque para esses juristas racionalistas o direito deveria ser como a natureza das coisas, ou seja, simples e unitária, já que a multiplicidade das leis era fruto da corrupção.
As idéias predominantes eram no sentido de que uma codificação vigente tornaria o direito mais simples, claro, acessível a todos e foram expressas num debate de 1790 na Assembléia constituído pela instauração dos júris popularis – instituição judiciária composta não de juízes togados, mas de simples cidadãos, que deveriam julgar sobre questões de fato, especialmente nas causas penais. Dessa forma o procedimento judiciário se reduziria a um juízo de fato, o que tornaria evidente que a questio júris não apresentaria dificuldade e afirmava Siéyes que qualquer cidadão poderia ser eleito membro da instituição do júris popularis.
No desenvolvimento do Código de Napoleão ficou o artigo 4.º que o juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpável de justiça denegada. Bobbio registra que o artigo estabelece que o juiz deve em cada caso solucionar a controvérsia que lhe é posta para julgamento, não podendo abster-se de decidir por omissão legislativa.
Bobbio destaca que pelo inconveniente de o juiz, durante a Revolução, se abster de julgar por falta de lei e devolver os atos ao legislativo para obter disposições a respeito, motivou o artigo 4.º do Código de Napoleão, que impunha ao juiz decidir em cada caso, e o artigo 9.º que indicava os critérios com base nos quais decidir no silêncio ou, de qualquer maneira, na incerteza da lei. Eliminado o artigo 9.º, o 4.º analisado isoladamente e sem os motivos históricos que lhe motivaram, foi entendido pelos primeiros intérpretes do Código de forma totalmente diversa; isto é, é interpretado, assim, no sentido de que se deveria sempre deduzir da própria lei a norma para resolver quaisquer controvérsias. Tal artigo, de fato, tem sido um dos argumentos mais freqüentemente citados pelos juspositivistas, para demonstrar que, do ponto de vista do legislador, a lei compreende a disciplina de todos os casos (isto é, para demonstrar a chamada completude da lei).
Foi nessa base de interpretação do artigo 4.º que se fundou a escola dos intérpretes do Código civil, conhecida como ‘escola da exegese’ (école de l´exégèse); esta que foi acusada de ‘fetichismo da lei’, porque considerava o Código de Napoleão como se tivesse sepultado todo o direito precedente e contivesse em si as normas para todos os possíveis casos. A pretensão era de resolver quaisquer questões na intenção do legislador.
Foi observado por Bobbio que:
Na verdade, o art. 4.º não desempenha a função de válvula de segurança que garanta o poder de criação do direito por parte do juiz, como era a intenção de seus redatores e, em particular, de Portalis; por outro lado, verificou-se aquele fenômeno histórico de Savigny, em 1814, escrevendo “da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência” havia previsto e receado quando a codificação vigorasse na Alemanha, isto é, a brusca interrupção do desenvolvimento da tradição jurídica e, principalmente,da ciência jurídica e a parte por parte desta última de sua capacidade criativa. Isto acontece efetivamente na França com a escola da exegese, cujo nome indica como ela se limitava a uma interpretação passiva e mecânica do Código, enquanto aquela que a sucedeu, a escola científica, assumiu este nome precisamente para destacar que se propunha uma elaboração autônoma de dados e de conceitos jurídicos cuja validade fosse independente e transcendesse o próprio Código.
Imperava a idéia da segurança jurídica, na qual o jurista deveria renunciar a toda contribuição criativa na interpretação da lei, limitando-se simplesmente a tornar explícito, através de um procedimento lógico (silogismo), aquilo que já está implicitamente estabelecido na lei.
No texto Bobbio elenca cinco pontos voltados às causas determinantes do advento da escola da exegese:
a) O próprio fato da codificação, que se apresentava como um prontuário todas ou pelo menos as principais controvérsias;
b) O princípio da autoridade que dominava a mentalidade do jurista. A codificação é a vontade do legislador expressa de modo seguro e completo e os que operam o direito devem se ater ao exposto pela autoridade soberana;
c) Considerada como a justificativa jurídico-filosófica da fidelidade ao Código, é representada pela doutrina da separação dos poderes, que constitui o fundamento ideológico do Estado moderno;
d) Também de natureza ideológica o princípio da certeza do direito. O direito se apresenta como um critério seguro de conduta;
e) De cunho político tem-se as pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre os estabelecimentos reorganizados de ensino superior de direito. Para que fosse ensinado somente o direito positivo e se deixasse de lado as teorias gerais do direito e as concepções jusnaturalistas (todas coisas inputes, ou perigosas, aos olhos do governo napoleônico que, não esqueçamos, era nitidamente autoritário.
Citando as explicações de Blondeau Bobbio esclareceu que as missões dos primeiros professores dessas escolas era substituir o vago ensino criado pela lei de brumário por um ensino positivo e prático. Todos se compenetraram excessivamente desta missão; desprezaram a filosofia e a história.
Instruções eram vindas do “alto” e o governo imperial teve forte influência e quase ordenou a exegese, pelo que Bobbio relata das conclusões de Bonnecase que reproduziu afirmação de Bonnecase: eu não conheço o Direito Civil, eu ensino o Código de Napoleão.
Para a reflexão sobre a influência da escola da exegese no Ensino do Direito pode-se transcrever o que os alunos descreveram sobre o modo que Bugnet concebeu e praticou a exegese:
Partidário do método analítico, ele comentava o Código na sua ordem. Tomava cada artigo, o lia lentamente, o dissecava, para usar sua expressão original, salientava todas as palavras em destaque, depois, visando tolher à teoria o pouco de abstrato que ela possuía dava um exemplo vivo, animado, atraente.
Em escritos sobre a escola da exegese registrou Bobbio que:
A escola da exegese deve seu nome à técnica adotada pelos seus primeiros expoentes no estudo e exposição do Codigo de Napoleçao, técnica que consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio código.
A história dessa escola foi dividida em três períodos: os primórdios (1804 a 1830), o apogeu (1830 a 1880) e o declínio (1880 em diante, sendo que Bobbio que registra que foi até o fim do século passado, levando em conta a sua época). O direito natural era visto como distinto do direito positivo e irrelevante para o jurista enquanto não positivado.
São destacados cinco caracteres fundamentais da escola da exegese, levando em conta o tratado de Bonnecase:
a) Inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo;
b) Concepção rigidamente estatal do direito, segundo a qual jurídicas são exclusivamente as normas postas pelo Estado, ou, de qualquer forma, que conduzam a um reconhecimento por parte dele. Trata-se do princípio da onipotência do legislador.
c) A interpretação da lei fundada na intenção do legislador. Bobbio destaque que trata-se de uma concepção de interpretação que tem uma grande importância na história e na prática da jurisprudência, sendo acatada até os nossos dias atuais.
d) O culto do texto da lei, pelo qual o intérprete deve ser rigorosamente subordinado às disposições dos artigos do Código.
e) O respeito ao princípio da autoridade. A tentativa de demonstrar a justeza ou a verdade de uma proposição, apelando para a afirmação de um personagem cuja palavra não pode ser colocada em discussão, é permanente e geral na história das idéias.
É válido ressaltar que Bobbio destaca que o uso do princípio da autoridade ainda é praticado no campo do direito e é de máxima importância para compreender a mentalidade e o comportamento jurídicos e que tal princípio é utilizado não só pelo absoluto respeito à lei mas, também, pela grande autoridade que gozavam os primeiros comentares do Código de Napoleão, seguidos pelos demais juristas, como se fossem outros tantos dogmas.
Tendo em vistas os escritos de Bobbio é possível reflexões sobre pesquisa já efetuada sobre o Ensino do Direito e o Positivismo Jurídico, inserida em Dissertação de Mestrado no Departamento de Educação da UFSCar, nos termos que seguem.
A professora Carlini, no Congresso da Associação Brasileira do Ensino do Direito (ABEDi), do ano de 2004, chamou a atenção para a ausência de preocupação com o aspecto crítico ou com o aspecto didático por parte dos professores de Direito e escreveu:
Apesar das críticas que têm sido feitas, é inevitável constatar que as aulas nos cursos de Direito ainda são preparadas em sua grande maioria a partir de informações contidas nos manuais, apostilas e livros de doutrina que, fundamentalmente, analisam a legislação existente sobre cada tema, sem preocupação com o aspecto crítico ou com o aspecto didático. As aulas nas faculdades de Direito quase sempre são ministradas de forma expositiva, e os alunos são incentivados a participar delas como ouvinte, de preferência, atentos e silenciosos.
(...)
Nos últimos anos, em boa parte das escolas privadas, os professores de Direito foram incentivados a ministrar aulas para preparar os alunos para o Exame do Provão (Exame Nacional de Cursos) e da Ordem dos Advogados do Brasil, em especial para o primeiro que avalia ao mesmo tempo o aluno e a própria insituição. (CARLINI, 2004, p. 14)
Carlini segue levando à discussão o fato de que muitas vezes o professor de Direito fundamenta sua aula preferencialmente no texto da Lei, sem espaço para questionamentos seus e dos alunos. De fato, na carreira de docente, pude constatar professores que dispensam toda ou quase toda a atenção no exame da OAB, acreditando que o bom desempenho de sua disciplina está no fato de os alunos resolverem as questões da prova da OAB e aplicam desde o primeiro ano do Curso de Direito os testes da OAB. Essa cultura privilegia, com excesso, a memorização, daí, a necessidade de refletir sobre a adequação do método utilizado para a boa formação do aluno, o que desafia, talvez, uma pesquisa específica, o que não é o caso desse trabalho.
Não raro, os professores exigem que os alunos decorem os artigos e, quando pedem interpretação, os alunos devem fazê-la de acordo com a doutrina adotada pelo mestre, sem poder questioná-la (TAGLIAVINI, 1999, p. 29).
Os pontos acima discutidos levaram a uma outra questão, classificada nessa oportunidade como a mais importante e que partiu do fato de que muitos professores de direito, com destaque para o Direito do Trabalho, limitam-se a informar os alunos sobre o texto da lei, o posicionamento dos tribunais e dos pesquisadores - a conhecida doutrina. Esses professores, portanto, não se atêm à forma como a norma jurídica estudada surgiu, como é interpretada e aplicada, deixando de contextualizá-la e de discutir os acontecimentos sociais que, por sua vez, envolvem a história, a economia e a política. Em suma, a lei é apresentada ao aluno como pronta e acabada para ser aplicada, ficando o aluno inerte, como mero recipiente, carente de elementos que possibilitem reflexões e análises críticas.
Os debates sobre o exame da OAB ou outros exames para carreiras jurídicas, realizados com alunos, com bacharéis que aumentam a fila dos que procuram passar na prova da OAB e com os que já obtiveram êxito nesses exames, constantemente indicam a necessidade de decorar a lei. Ao indagar essas pessoas a respeito da forma de abordagem do conteúdo das disciplinas, sempre dando ênfase ao Direito do Trabalho, a resposta na maioria das vezes é a de que a participação do aluno é quase que inexistente e, quando este participa, é para ler artigos solicitados pelo professor.
Essa reflexão sobre a relação entre o professor e a forma de levar o aluno ao conhecimento motivou a leitura de Paulo Freire e, entre outros, de Demerval Saviani. Além disso, dados da pesquisa realizada com alunos do curso de Direito apontaram que, nas turmas que participaram da pesquisa, a relação que se dá a princípio entre professor e aluno é uma relação de sujeito narrador e objeto ouvinte, sem ter a preocupação de que o conhecimento do conteúdo desperte no aluno o pensamento crítico. O resultado da pesquisa bibliográfica aponta para a existência de crítica dos pesquisadores do ensino jurídico no Brasil sobre a falta de participação do aluno, o autoritarismo na sala de aula e a necessidade de decorar o texto da lei.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Renato Cassio Soares de. Ensino do direito do trabalho : - ensino positivado e sua perspectiva social. São Carlos : UFSCar, 2007.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E.Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
CARLINI, Angélica Luciá. A aprendizagem baseada em problemas e o ensino jurídico no Brasil: reflexões sobra a viabilidade desse novo paradigma. Anuário ABEDI, Florianópolis: Fundação Boiteux, Ano 2, 2004.
_______ Novos paradigmas para um ensino jurídico mais crítico e reflexivo. Anuário ABEDI, Florianópolis: Fundação Boiteux, Ano 3, 2005.
SAVIANI, Demerval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 15.ed. Campinas: Autores Associados, 2004.
________. Escola e Democracia: polêmicas do nosso tempo. 36.ª ed. Campinas: Autores Associados, 2004.
SAVIANI, Nereide. Saber escolar, currículo e didática. 4.ed. Campinas: Autores Associados, 2003.
TAGLIAVINI, João Virgílio. A ousadia de um novo ensino jurídico: interdisciplinaridade e aprendizado por problemas. Anuário ABEDI, ano 2, Florianópolis, SC: Fundação BOITEUX, 2004, págs. 215/228.
_________. O Ensino de filosofia do direto: uma proposta teórico-metodológica. 1999. Tese (Doutorado em Educação). Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
_________. Propostas práticas ao desafio de ser um bom docente de direito. 1ª Jornada sobre ensino e aprendizagem do Direito do Interior Paulista. Ribeirão Preto, 2005.
Por Renato Cassio Soares de Barros
Diante do objeto de pesquisa do “Grupo de Pesquisa Educação e Direito na Sociedade Contemporânea”, da UFSCar, do qual pertenço, este trabalho tem como objetivo análise bibliográfico sobre o Capítulo III do livro “O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito ”, de Norberto Bobbio, cujo título é “O Código de Napoleão e as Origens do Positivismo Jurídico na França”, para reflexão sobre o positivismo jurídico e o Ensino do Direito.
Bobbio aborda a entrada em vigor do Código de Napoleão, na França, em 1804, com repercussão considerável no pensamento jurídico moderno e contemporâneo de sua época, repercussão que motivou o pensamento do direito em termos de codificação, como se o direito devesse estar encerrado num código, o que deveria ser extinto da atitude mental, considerando que os jovens que iniciassem os estudos jurídicos deveriam procurar de libertar dessa atitude.
Com a observação de que a idéia de codificação surgiu por conta do pensamento iluminista, na segunda metade do Século XVIII, não sendo comum a todo o mundo e a todos os países civilizados, vez que ausente a codificação nos países anglo-saxônicos, a codificação representava uma experiência jurídica dos dois últimos séculos, levando em conta a sua época, típica daquela Europa continental, influenciando a legislação e o pensamento jurídico.
O projeto de codificação tem origem na idéia de que possa existir um legislador universal e a necessidade de um direito simples e unitário, notadamente porque, na sociedade francesa, não havia um único ordenamento jurídico civil, penal e processual, mas uma multiplicidade de direitos territorialmente limitados, em geral dividido em duas partes, a setentrional, onde estavam vigentes os costumes locais ‘(droit coutumier’), e a meridional, onde vigorava o direito comum romano (‘droit écrit). Um direito simples e unitário deveria ser instrumento a ser apresentado pela ciência da legislação.
A ciência da legislação interrogaria a natureza do homem, estabeleceria quais eram as leis universais e imutáveis com o objetivo de regular a conduta humana. Para os iluministas o verdadeiro direito estava fundado na natureza das coisas conhecíveis pela razão humana.
Nas considerações de Bobbio os juristas da Revolução Francesa se inspiraram nas concepções se Rousseau e iluministas em geral se propuseram a eliminar o acúmulo de normas jurídicas produzidas pelo desenvolvimento histórico. Estar-se ia a instaurar no seu lugar um direito fundado na natureza e adaptado às exigências universais humanas, porque para esses juristas racionalistas o direito deveria ser como a natureza das coisas, ou seja, simples e unitária, já que a multiplicidade das leis era fruto da corrupção.
As idéias predominantes eram no sentido de que uma codificação vigente tornaria o direito mais simples, claro, acessível a todos e foram expressas num debate de 1790 na Assembléia constituído pela instauração dos júris popularis – instituição judiciária composta não de juízes togados, mas de simples cidadãos, que deveriam julgar sobre questões de fato, especialmente nas causas penais. Dessa forma o procedimento judiciário se reduziria a um juízo de fato, o que tornaria evidente que a questio júris não apresentaria dificuldade e afirmava Siéyes que qualquer cidadão poderia ser eleito membro da instituição do júris popularis.
No desenvolvimento do Código de Napoleão ficou o artigo 4.º que o juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpável de justiça denegada. Bobbio registra que o artigo estabelece que o juiz deve em cada caso solucionar a controvérsia que lhe é posta para julgamento, não podendo abster-se de decidir por omissão legislativa.
Bobbio destaca que pelo inconveniente de o juiz, durante a Revolução, se abster de julgar por falta de lei e devolver os atos ao legislativo para obter disposições a respeito, motivou o artigo 4.º do Código de Napoleão, que impunha ao juiz decidir em cada caso, e o artigo 9.º que indicava os critérios com base nos quais decidir no silêncio ou, de qualquer maneira, na incerteza da lei. Eliminado o artigo 9.º, o 4.º analisado isoladamente e sem os motivos históricos que lhe motivaram, foi entendido pelos primeiros intérpretes do Código de forma totalmente diversa; isto é, é interpretado, assim, no sentido de que se deveria sempre deduzir da própria lei a norma para resolver quaisquer controvérsias. Tal artigo, de fato, tem sido um dos argumentos mais freqüentemente citados pelos juspositivistas, para demonstrar que, do ponto de vista do legislador, a lei compreende a disciplina de todos os casos (isto é, para demonstrar a chamada completude da lei).
Foi nessa base de interpretação do artigo 4.º que se fundou a escola dos intérpretes do Código civil, conhecida como ‘escola da exegese’ (école de l´exégèse); esta que foi acusada de ‘fetichismo da lei’, porque considerava o Código de Napoleão como se tivesse sepultado todo o direito precedente e contivesse em si as normas para todos os possíveis casos. A pretensão era de resolver quaisquer questões na intenção do legislador.
Foi observado por Bobbio que:
Na verdade, o art. 4.º não desempenha a função de válvula de segurança que garanta o poder de criação do direito por parte do juiz, como era a intenção de seus redatores e, em particular, de Portalis; por outro lado, verificou-se aquele fenômeno histórico de Savigny, em 1814, escrevendo “da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência” havia previsto e receado quando a codificação vigorasse na Alemanha, isto é, a brusca interrupção do desenvolvimento da tradição jurídica e, principalmente,da ciência jurídica e a parte por parte desta última de sua capacidade criativa. Isto acontece efetivamente na França com a escola da exegese, cujo nome indica como ela se limitava a uma interpretação passiva e mecânica do Código, enquanto aquela que a sucedeu, a escola científica, assumiu este nome precisamente para destacar que se propunha uma elaboração autônoma de dados e de conceitos jurídicos cuja validade fosse independente e transcendesse o próprio Código.
Imperava a idéia da segurança jurídica, na qual o jurista deveria renunciar a toda contribuição criativa na interpretação da lei, limitando-se simplesmente a tornar explícito, através de um procedimento lógico (silogismo), aquilo que já está implicitamente estabelecido na lei.
No texto Bobbio elenca cinco pontos voltados às causas determinantes do advento da escola da exegese:
a) O próprio fato da codificação, que se apresentava como um prontuário todas ou pelo menos as principais controvérsias;
b) O princípio da autoridade que dominava a mentalidade do jurista. A codificação é a vontade do legislador expressa de modo seguro e completo e os que operam o direito devem se ater ao exposto pela autoridade soberana;
c) Considerada como a justificativa jurídico-filosófica da fidelidade ao Código, é representada pela doutrina da separação dos poderes, que constitui o fundamento ideológico do Estado moderno;
d) Também de natureza ideológica o princípio da certeza do direito. O direito se apresenta como um critério seguro de conduta;
e) De cunho político tem-se as pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre os estabelecimentos reorganizados de ensino superior de direito. Para que fosse ensinado somente o direito positivo e se deixasse de lado as teorias gerais do direito e as concepções jusnaturalistas (todas coisas inputes, ou perigosas, aos olhos do governo napoleônico que, não esqueçamos, era nitidamente autoritário.
Citando as explicações de Blondeau Bobbio esclareceu que as missões dos primeiros professores dessas escolas era substituir o vago ensino criado pela lei de brumário por um ensino positivo e prático. Todos se compenetraram excessivamente desta missão; desprezaram a filosofia e a história.
Instruções eram vindas do “alto” e o governo imperial teve forte influência e quase ordenou a exegese, pelo que Bobbio relata das conclusões de Bonnecase que reproduziu afirmação de Bonnecase: eu não conheço o Direito Civil, eu ensino o Código de Napoleão.
Para a reflexão sobre a influência da escola da exegese no Ensino do Direito pode-se transcrever o que os alunos descreveram sobre o modo que Bugnet concebeu e praticou a exegese:
Partidário do método analítico, ele comentava o Código na sua ordem. Tomava cada artigo, o lia lentamente, o dissecava, para usar sua expressão original, salientava todas as palavras em destaque, depois, visando tolher à teoria o pouco de abstrato que ela possuía dava um exemplo vivo, animado, atraente.
Em escritos sobre a escola da exegese registrou Bobbio que:
A escola da exegese deve seu nome à técnica adotada pelos seus primeiros expoentes no estudo e exposição do Codigo de Napoleçao, técnica que consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio código.
A história dessa escola foi dividida em três períodos: os primórdios (1804 a 1830), o apogeu (1830 a 1880) e o declínio (1880 em diante, sendo que Bobbio que registra que foi até o fim do século passado, levando em conta a sua época). O direito natural era visto como distinto do direito positivo e irrelevante para o jurista enquanto não positivado.
São destacados cinco caracteres fundamentais da escola da exegese, levando em conta o tratado de Bonnecase:
a) Inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo;
b) Concepção rigidamente estatal do direito, segundo a qual jurídicas são exclusivamente as normas postas pelo Estado, ou, de qualquer forma, que conduzam a um reconhecimento por parte dele. Trata-se do princípio da onipotência do legislador.
c) A interpretação da lei fundada na intenção do legislador. Bobbio destaque que trata-se de uma concepção de interpretação que tem uma grande importância na história e na prática da jurisprudência, sendo acatada até os nossos dias atuais.
d) O culto do texto da lei, pelo qual o intérprete deve ser rigorosamente subordinado às disposições dos artigos do Código.
e) O respeito ao princípio da autoridade. A tentativa de demonstrar a justeza ou a verdade de uma proposição, apelando para a afirmação de um personagem cuja palavra não pode ser colocada em discussão, é permanente e geral na história das idéias.
É válido ressaltar que Bobbio destaca que o uso do princípio da autoridade ainda é praticado no campo do direito e é de máxima importância para compreender a mentalidade e o comportamento jurídicos e que tal princípio é utilizado não só pelo absoluto respeito à lei mas, também, pela grande autoridade que gozavam os primeiros comentares do Código de Napoleão, seguidos pelos demais juristas, como se fossem outros tantos dogmas.
Tendo em vistas os escritos de Bobbio é possível reflexões sobre pesquisa já efetuada sobre o Ensino do Direito e o Positivismo Jurídico, inserida em Dissertação de Mestrado no Departamento de Educação da UFSCar, nos termos que seguem.
A professora Carlini, no Congresso da Associação Brasileira do Ensino do Direito (ABEDi), do ano de 2004, chamou a atenção para a ausência de preocupação com o aspecto crítico ou com o aspecto didático por parte dos professores de Direito e escreveu:
Apesar das críticas que têm sido feitas, é inevitável constatar que as aulas nos cursos de Direito ainda são preparadas em sua grande maioria a partir de informações contidas nos manuais, apostilas e livros de doutrina que, fundamentalmente, analisam a legislação existente sobre cada tema, sem preocupação com o aspecto crítico ou com o aspecto didático. As aulas nas faculdades de Direito quase sempre são ministradas de forma expositiva, e os alunos são incentivados a participar delas como ouvinte, de preferência, atentos e silenciosos.
(...)
Nos últimos anos, em boa parte das escolas privadas, os professores de Direito foram incentivados a ministrar aulas para preparar os alunos para o Exame do Provão (Exame Nacional de Cursos) e da Ordem dos Advogados do Brasil, em especial para o primeiro que avalia ao mesmo tempo o aluno e a própria insituição. (CARLINI, 2004, p. 14)
Carlini segue levando à discussão o fato de que muitas vezes o professor de Direito fundamenta sua aula preferencialmente no texto da Lei, sem espaço para questionamentos seus e dos alunos. De fato, na carreira de docente, pude constatar professores que dispensam toda ou quase toda a atenção no exame da OAB, acreditando que o bom desempenho de sua disciplina está no fato de os alunos resolverem as questões da prova da OAB e aplicam desde o primeiro ano do Curso de Direito os testes da OAB. Essa cultura privilegia, com excesso, a memorização, daí, a necessidade de refletir sobre a adequação do método utilizado para a boa formação do aluno, o que desafia, talvez, uma pesquisa específica, o que não é o caso desse trabalho.
Não raro, os professores exigem que os alunos decorem os artigos e, quando pedem interpretação, os alunos devem fazê-la de acordo com a doutrina adotada pelo mestre, sem poder questioná-la (TAGLIAVINI, 1999, p. 29).
Os pontos acima discutidos levaram a uma outra questão, classificada nessa oportunidade como a mais importante e que partiu do fato de que muitos professores de direito, com destaque para o Direito do Trabalho, limitam-se a informar os alunos sobre o texto da lei, o posicionamento dos tribunais e dos pesquisadores - a conhecida doutrina. Esses professores, portanto, não se atêm à forma como a norma jurídica estudada surgiu, como é interpretada e aplicada, deixando de contextualizá-la e de discutir os acontecimentos sociais que, por sua vez, envolvem a história, a economia e a política. Em suma, a lei é apresentada ao aluno como pronta e acabada para ser aplicada, ficando o aluno inerte, como mero recipiente, carente de elementos que possibilitem reflexões e análises críticas.
Os debates sobre o exame da OAB ou outros exames para carreiras jurídicas, realizados com alunos, com bacharéis que aumentam a fila dos que procuram passar na prova da OAB e com os que já obtiveram êxito nesses exames, constantemente indicam a necessidade de decorar a lei. Ao indagar essas pessoas a respeito da forma de abordagem do conteúdo das disciplinas, sempre dando ênfase ao Direito do Trabalho, a resposta na maioria das vezes é a de que a participação do aluno é quase que inexistente e, quando este participa, é para ler artigos solicitados pelo professor.
Essa reflexão sobre a relação entre o professor e a forma de levar o aluno ao conhecimento motivou a leitura de Paulo Freire e, entre outros, de Demerval Saviani. Além disso, dados da pesquisa realizada com alunos do curso de Direito apontaram que, nas turmas que participaram da pesquisa, a relação que se dá a princípio entre professor e aluno é uma relação de sujeito narrador e objeto ouvinte, sem ter a preocupação de que o conhecimento do conteúdo desperte no aluno o pensamento crítico. O resultado da pesquisa bibliográfica aponta para a existência de crítica dos pesquisadores do ensino jurídico no Brasil sobre a falta de participação do aluno, o autoritarismo na sala de aula e a necessidade de decorar o texto da lei.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Renato Cassio Soares de. Ensino do direito do trabalho : - ensino positivado e sua perspectiva social. São Carlos : UFSCar, 2007.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E.Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
CARLINI, Angélica Luciá. A aprendizagem baseada em problemas e o ensino jurídico no Brasil: reflexões sobra a viabilidade desse novo paradigma. Anuário ABEDI, Florianópolis: Fundação Boiteux, Ano 2, 2004.
_______ Novos paradigmas para um ensino jurídico mais crítico e reflexivo. Anuário ABEDI, Florianópolis: Fundação Boiteux, Ano 3, 2005.
SAVIANI, Demerval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 15.ed. Campinas: Autores Associados, 2004.
________. Escola e Democracia: polêmicas do nosso tempo. 36.ª ed. Campinas: Autores Associados, 2004.
SAVIANI, Nereide. Saber escolar, currículo e didática. 4.ed. Campinas: Autores Associados, 2003.
TAGLIAVINI, João Virgílio. A ousadia de um novo ensino jurídico: interdisciplinaridade e aprendizado por problemas. Anuário ABEDI, ano 2, Florianópolis, SC: Fundação BOITEUX, 2004, págs. 215/228.
_________. O Ensino de filosofia do direto: uma proposta teórico-metodológica. 1999. Tese (Doutorado em Educação). Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
_________. Propostas práticas ao desafio de ser um bom docente de direito. 1ª Jornada sobre ensino e aprendizagem do Direito do Interior Paulista. Ribeirão Preto, 2005.