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É POSSÍVEL COMPREENDER, APLICAR, QUESTIONAR E ENSINAR O DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO DIVORCIADO DA REALIDADE E DA HISTÓRIA DO TRABALHO NO BRASIL?
Renato Cassio Soares de Barros 26/01/2015 | 16h41
Ensino e Direito do Trabalho
É POSSÍVEL COMPREENDER, APLICAR, QUESTIONAR E ENSINAR O DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO DIVORCIADO DA REALIDADE E DA HISTÓRIA DO TRABALHO NO BRASIL?

1. O Direito do Trabalho no Brasil e a Escravidão: pensar a história e o futuro.

A pretensão é a de breves considerações sobre a necessidade de se refletir, conhecer, ensinar, debater e aplicar o Direito do Trabalho no Brasil sem deixar de pensar sobre o surgimento do trabalho neste País, sobre o predomínio do trabalho escravo como a primeira forma de produção desenvolvida, que, ao longo de anos, deu origem à relação de emprego, atual objeto de estudo da disciplina Direito do Trabalho e objeto do trabalho intelectual e/ou técnico do advogados, juízes, procuradores do trabalho, auditores fiscais, dentre outros. Por entender coerente nas linhas que seguem foi data atenção para a história do trabalho escravo no Brasil, deixando para outra oportunidade considerações sobre o trabalho assalariado, algumas lutas e ações políticas em busca de direitos sociais.

Não apenas ilustrando, mas despertando para a necessidade de reflexão a respeito da história do trabalho, sobre a atualidade e o sistema normativo trabalhista, são transcritas a notas do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho, que causam ou deveriam causar espanto a respeito do gritante número de trabalhadores em condições análogas a de escravo no Brasil, em pleno Século XXI, que são libertos graças às atuações corajosas e de importante função social dos Procuradores do Trabalho e Auditores Fiscais do Trabalho.

“ Fiscalização do MTE liberta 2.269 trabalhadores no primeiro semestre do ano. Servidão por dívida é ainda a forma mais comum de obrigar trabalhadores a exercer atividades sem pagamento de direitos. Pará é o estado recordista de denúncias e libertações.

Brasília, 29/07/2008 - O Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 2.269 trabalhadores de condições análogas a de escravo no primeiro semestre desse ano, em 54 ações realizadas em todo país, que resultaram no pagamento de R$ 3,5 milhões em indenizações trabalhistas. O Pará é o estado recordista em denúncias e libertações de trabalhadores. Só neste estado da Região Norte foram realizadas 15 operações no primeiro semestre, com 426 resgatados.

Formado por auditores fiscais do trabalho, procuradores federais e policiais federais, o Grupo visitou 96 propriedades de janeiro a junho, tendo encontrado diversas irregularidades, em especial o uso de mão-de-obra análoga a de escravo, proibida pelo artigo 149 do Código Penal Brasileiro.

Desde 1995 já são 30.036 trabalhadores resgatados pelo Grupo Móvel. Em 2007 o grupo bateu o recorde de libertações, retirando 5.999 pessoas de condições degradantes em 116 operações realizadas em todo país.”

“03/07/2008 08:00
Fazendeiros de Peixoto de Azevedo são condenados por trabalho escravo
Os proprietários de uma fazenda no município de Peixoto de Azevedo (MT) foram condenados a pagar R$ 122 mil a título de danos morais por submeter 11 trabalhadores a condições análogas a de escravo. Além das indenizações, o casal de proprietários foi condenado a cumprir 16 obrigações, entre as quais fazer o registro nas carteiras de trabalho, fornecer equipamento de proteção individual (EPI), manter alojamentos e banheiros, fornecer água potável e transporte em veículo adequado. Durante fiscalização realizada no ano passado, o Grupo Móvel de Erradicação do Trabalho Escravo, órgão ligado ao Ministério do Trabalho, emitiu 17 autos de infração após constatar que os trabalhadores contratados para roçar o pasto da fazenda não dispunham de habitação ou local de refeição, banheiro, água potável, cozinha ou fogão. O transporte até a frente de trabalho era feito na carroceria de caminhonete ou por carretão puxado por trator.”

Miguel Reale diria que para a completa reflexão jurídica necessário seria análise do fato, valor e norma, uma vez que os três se dialetizam e, penso eu, para compreensão do fato e valor se faz imprescindível conhecer a história, que auxilia na cognição do surgimento da norma, a exemplo, em que contexto surgiu a norma. Em um tempo não muito distante, se analisado do ponto de vista de que Brasil é um país novo, tais notícias transcritas não existiriam, porque o modo de produção não permitiria um sistema legislativo em prol do trabalho. Já escreveu TAGLIAVINI que:

Se o modo de produção é escravista, as idéias, e portanto também a lei, têm uma dimensão que sustenta a escravidão. Se o modo de produção é capitalista, as leis seguem o espírito liberal que é o fundamento do capitalismo, por pregar a liberdade, igualdade, livre iniciativa, tolerância etc. (TAGLIAVINI, 1999, p. 192)


O combate feito em busca da eliminação de trabalhadores em condições análogas a de escravo, em pleno Século XXI, no Brasil, leva a refletir sobre a relação de emprego no Brasil e seus antecedentes, para entender a norma jurídica não apareceu do nada, como um milagre, mas é fruto de muita pressão social em busca de direitos e de muitas medidas por parte do governo para sufocar as lutas de classes.

2. O trabalho escravo no Brasil

Pensar a relação de emprego no Brasil induz a pensar que antes do trabalho assalariado, do trabalho prestado em troca de algum tipo de contraprestação, o que havia era a exploração do próprio homem através do trabalho escravo, ou seja, o homem era explorado pelo próprio homem, num território cujo desenvolvimento comercial da Europa ocasiona sua ocupação econômica, porque com a ocupação do território brasileiro as nações européias fazem pressão política sobre Portugal e Espanha, vez que, segundo FURTADO (1977) para tais nações era regra imposta a de que os portugueses e espanhóis só tivessem direito às terras que efetivamente tivessem ocupado.

O Brasil mereceu atenção dos franceses que, por motivos religiosos, mas com apoio do governo, visavam criar uma colônia de povoamento, fato que motiva Portugal a esforçar-se para ocupar as terras americanas permanentemente, visando o ouro que tinha no interior das terras do Brasil. Do ponto de vista político e econômico, portanto, a utilização das terras americanas era a saída para os portugueses. Além da extração de metais preciosos, Portugal buscou outro meio de utilização econômica das terras brasileiras, sendo a exploração agrícola a forma encontrada para essa utilização, acontecimento de grande importância na história americana, visto que fez com que a América passasse a ser parte integrante da economia produtiva européia.

Escreveu FURTADO (1977) que com a quebra do monopólio das fontes de produção dos venezianos, a produção portuguesa passou a fazer parte do mercado, com o auxílio dos holandeses que contribuíram com a experiência comercial que possuíam, com o financiamento das instalações produtivas e importação da mão-de-obra escrava para o Brasil. Para o desenvolvimento do comércio açucareiro, estavam unidas a experiência técnica dos portugueses e a capacidade comercial e o poder financiador dos holandeses. Contudo, o problema da mão-de-obra estava presente, tendo em vista o elevado custo para transportá-la da Europa devido à necessidade de atrai-la com pagamentos de salários maiores do que os pagos na Europa. A saída, portanto, foi o trabalho escravo, mesmo porque os portugueses eram conhecedores do mercado africano de escravos.

A mão-de-obra escrava abastecia algumas regiões da Europa graças a estratégias iniciadas quase um século antes de Dom Henrique para a captura de negros, o que foi ampliado com o financiamento dos holandeses e gerou a possibilidade de transportar para o Brasil a mão-de-obra escrava. Os primeiros projetos de colonização contavam com a mão-de-obra escrava indígena e a opção pela mão-de-obra escrava negra teve o incentivo da alta rentabilidade da importação de escravos africanos. No entanto, isso não significa que a mão-de-obra escrava indígena não tenha desempenhado papel fundamental nesse processo, visto que, antes da chegada dos negros, eram eles que desempenhavam o trabalho agrícola.

A colonização portuguesa não teve muitas dificuldades para destacar-se e vencer eventuais concorrências nesse empreendimento, porque a concorrente Espanha não se dedicou à exploração agrícola, mas, sim, se voltou à exploração de metais preciosos. Além disso, a posterior decadência da economia espanhola contribuiu para o êxito da empresa colonizadora agrícola portuguesa. Aos que instalassem engenho no Brasil colônia eram concedidos privilégios, como isenções de tributos, impenhorabilidade dos instrumentos de produção, honrarias, títulos, etc. Entre os privilégios, destaca-se a possibilidade de escravidão dos índios, que se tornou inviável devido a hostilidade dos mesmos.

3. O trabalho escravo indígena

A exploração de mão-de-obra escrava no Brasil se deu inicialmente com os índios, antes mesmo do trabalho escravo dos negros. Aos índios foram impostas as atividades agrícolas e de construção dos engenhos.

Observada de uma perspectiva ampla, a colonização do século XVI surge fundamentalmente ligada à atividade açucareira. Aí aonde a produção de açúcar falhou – caso de São Vicente – o pequeno núcleo colonial conseguiu subsistir graças à relativa abundância de mão-de-obra indígena (FURTADO, 1977, p. 42)

Ao tratar da escravidão indígena GORENDER (1980) expõe que as primeiras expedições portuguesas iniciaram a escravização dos índios e a Coroa portuguesa, após se interessar pela colonização sistemática, legalizou a escravização dos índios através das Cartas de Doação das capitanias hereditárias e, em nota, aponta a “Carta de Doação a Duarte Coelho”, noticiando que:

Tendo contado, no século XVI, com escasso suprimento de africanos, os colonos do Nordeste se serviram amplamente dos trabalhadores índios como escravos nos primeiros engenhos. Nas regiões pobres, onde o cultivo de gêneros de exportação tardou em se desenvolver, o índio continuou sendo o escravo – predominante ou único, durante longo período. (GORENDER, 1980, p. 468)

Diante da utilidade dos índios para o desenvolvimento econômico, a captura e comércio dessa mão-de-obra foram as primeiras atividades econômicas estáveis dos grupos de população não destinados à indústria açucareira no Brasil. Com referência à caça de índios, PINSKY (1993) relata que por volta de trezentos mil indígenas foram aprisionados e escravizados, e um terço foi transportado para “outras capitanias”.Os sertanista profissionais, oriundos de São Vicente, dedicavam-se à caça indígena, da mesma forma que os portugueses, no século XV, invadiram o território africano na caça de escravos negros. A apropriação indevida da mão-de-obra por meio do trabalho escravo há muito tempo fazia parte do processo de acúmulo de riqueza dos portugueses, visto que a captura de escravos em Portugal data do ano de 1441.

Embora a escravidão de índios tenha sido um fato que ocorreu no Brasil, os índios apresentavam muita resistência, mas como os portugueses que vieram ao Brasil já utilizavam em Portugal a mão-de-obra de escravos capturados na costa da África, tiveram a iniciativa de escravizar os índios, que por eles eram chamados de negros da terra. O trabalho escravo índio foi bem utilizado pelos portugueses para derrubada de árvores, com destaque para o pau-brasil que foi muito explorado entre 1500 e 1535. Alguns índios recebiam em troca do trabalho quinquinharias, como canivetes, tecidos etc, mas havia resistência por parte dos índios.

A dificuldade enfrentada pelos portugueses na captura de índios estava na facilidade que os índios tinham de evitar o aprisionamento e de fugir porque estavam em seu próprio território, na falta de costume dos índios com o trabalho regular e pesado, já que os índios viviam livres, colhendo frutos, pescando e cuidando do próprio cultivo, além da ausência de preparo dos índios para viver com o homem branco, para resistir a vírus e bactérias que produziam doenças comuns aos europeus, como a gripe.

A experiência dos portugueses na escravidão dos negros muito contribuiu para a formação da idéia de que seria viável a continuação da mão-de-obra escrava com a substituição do índio pelo negro. Contribuíram com a substituição do escravo índio pelo escravo negro as epidemias no litoral do Brasil, como o sarampo e a varíola, e as fortes gripes, que levaram a mortes em massa de índios, além das pressões dos jesuítas sobre Coroa portuguesa, uma vez que eles eram contra a escravidão indígena.

GORENDER (1980) historia que a escravização dos índios passou a ser objeto de jogo de interesses e, a respeito da interferência dos jesuítas na escravização do índio e sua substituição pelo escravo negro, escreveu que:

Enquanto os colonos viam no índio somente o escravo, os jesuítas pretendiam catequizá-lo e sumbetê-lo inclusive ao domínio temporal da Companhia de Jesus. Uma vez que a escravidão dos indígenas concorria com a venda de negros e restringia o seu mercado, os traficantes de africanos não deixaram de aprovar a orientação dos jesuítas, mesmo que o fizessem tacitamente. Por sua vez, os jesuítas recomendaram expliciamente a introdução de africanos como meio de afastar os colonos da exploração dos índios, além do que a Companhia de Jesus encheu de escravos negros seus próprios estabelecimentos econômicos. (GORENDER, 1980, p. 468/469)

4. O trabalho escravo do negro

Do ponto de vista econômico o escravo indígena foi substituído pelo escravo africano com a finalidade de atender aos interesses da coroa portuguesa e dos traficantes, pois o comércio ultramarino gerava dividendos ao governo e aos comerciantes. Entre outros fatores para tal substituição destacam-se a baixa densidade demográfica da população indígena, a resistência das tribos, as epidemias e o interesse dos jesuítas.

A tarefa atribuída aos trabalhadores escravos no Brasil era árdua; o negro desempenhava o trabalho na grande lavoura, cujo alvo era o mercado mundial. Tratava-se de um trabalho coletivo, cujo horário, tarefa, ritmo e turnos de trabalho eram determinados pelo proprietário e sua equipe. Ao escravo só cabia obedecer ou sofrer as sanções impostas pelo senhor da terra. Havia uma multiplicidade de etnias e clãs de negros trazidos ao Brasil – guinéus, angolanos, sudaneses, minas, etc – fruto do apresamento e dos interesses dos senhores. Os senhores temiam a união dos escravos e buscavam meios de evitar a integração entre eles, com diversificação de hábitos, língua e religião, dificultando, assim, o surgimento de qualquer espécie de organização conduzida por eles, segundo PINSKI (1993).

O escravo era tratado como coisa e seus proprietários não se importavam com a necessidade de propiciar um ambiente confortável a esse tipo de trabalhadores. Não havia respeito à dignidade da pessoa humana, sendo que eram vistos apenas como meio de produção. Pelo que se constata das notícias do MPT e do MTE, ainda há quem mantém essa condição.

Como os escravos tinham uma vida útil média de 10 anos, a não utilização do trabalho escravo no engenho em atividades produtivas ligadas diretamente à exportação obrigava o senhor do engenho a utilizar a força do escravo em tarefas de outra ordem, como nas obras de construção, abertura de novas terras, melhoramentos locais, entre outras, sendo que uma parte era utilizada para prestação de serviços pessoais.

5. O trabalho escravo e a excessiva jornada de trabalho

Relacionando a história com os autuais conflitos trabalhistas que ainda tem elevado número nas pautas de audiências trabalhistas, ou seja, a realização do trabalho acima do máximo permitido pela Constituição Federal – 8 horas diárias e 44 horas semanais – nas leis infraconstitucionais que regulam as jornadas especiais, nas normas coletivas ou nos contratos individuais, e já servindo de reflexão sobre a existência da norma limitadora e punitiva, neste texto é útil discorrer sobre a excessiva jornada de trabalho que os trabalhadores escravos eram submetidos. O trabalho variava de 15 a 18 horas por dia. A única preocupação dos senhores era a produção, o resultado do trabalho, o acúmulo de capital, o lucro.

O início do trabalho se dava na madrugada, ao som do sino que acordava os escravos, que eram obrigados a se apresentarem enfileirados ao feitor para a posterior atribuição das tarefas. Para trabalharem nas atividades dos campos mais distantes da fazenda, o meio de transporte dos escravos era o carro de boi, e quando o local trabalho era próximo da fazenda os mesmos iam a pé, segundo PINSKY (1993). Os escravos trabalhavam com se fossem uma máquina, como se não tivessem necessidades físicas, cumprindo uma jornada de trabalho desumana, voltados apenas para a produção, já que os senhores visavam lucros os escravos como coisa, um bem material que deveria retribuir o investimento e gerar lucros.

6. A alimentação dos escravos e o intervalo para refeição e descanso

Soma-se à excessiva carga de trabalho e à longa jornada dos escravos, a precária alimentação. O almoço para os escravos era servido por volta das dez horas da manhã. O cardápio era composto de feijão, angu de milho, abóbora, farinha de mandioca, de forma eventual compunha o cardápio toucinho ou partes do porco que eram desprezadas, como o rabo, a orelha, o pé, além de frutas da estação, como bananas, laranjas e goiaba. Os donos de escravos não se preocupavam com a saúde e tempo de vida deles e em fazendas mais pobres, a comida se limitava ao feijão com gordura (banha) e um pouco de farinha de mandioca, o que gerava o definhamento precoce dos negros escravos.

Além do excesso de trabalho e da alimentação precária, o intervalo para refeição quase não existia, nem se pensava em descanso após a alimentação. O retorno ao trabalho era imediato e prejudicial à saúde do escravo.

Qualquer que fosse a comida, era preparada em enormes panelas e servida em cuias nas quais os escravos enfiavam as mão ou, mais raramente, colheres de pau. A refeição deveria ser feira rapidamente, para não perder tempo, e de cócoras; os negros tinham que engolir tudo porque logo em seguida a faina continuava.

Por volta de uma hora da tarde, um café com rapadura era servido – substituído nos dias frios por cachaça - e às quatro horas jantava-se. Aí, comia-se o mesmo que no almoço, descansava-se alguns minutos e retomava-se o batente até escurecer.

Cumpria-se, então, o ritual da manhã, todos se apresentando ao administrador – ou dono, conforme o caso – da fazenda. Era quando, após uma breve oração, iniciava-se o serão que constava, geralmente, da produção ou beneficiamento de bens de consumo. Os escravos debulhavam e moíam o milho, preparavam a farinha de mandioca e o fubá, pilavam e torravam o café. Com freqüência, cortavam lenha e selecionavam café apanhado no período da colheita. (PINSKY 1993, p. 36)

Da citação acima é curioso notar que nos dias de frio a cachaça era servida durante o horário de trabalho e, atualmente, a embriaguez em serviço ou habitual é causa de extinção do contrato de trabalho por culpa do empregado – justa causa – conforme impõe o artigo 482, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), embora muito bem observado pelos juízes que tomam a cautela de, nos dias atuais, estudar a embriagues como doença que motiva o afastamento do empregado.

Fazendo uma conexão com a necessidade de intervalo para refeição e descanso, a história revela que o lazer e o descanso eram praticamente impossíveis, porque os escravos eram obrigados a trabalhar mesmo aos sábados, domingos e feriados, reparando estradas, cercas, destruindo formigueiros, trabalhando em construções ou outras tarefas. Os dias santificados não eram observados pela maioria dos fazendeiros, pois estes se preocupavam com a interrupção das atividades produtivas e a união dos negros nesses dias.

Entre os fazendeiros que permitiam que os escravos descansassem aos domingos, alguns os remuneravam pelo trabalho nesses dias. Outros fazendeiros faziam cessão de pequenos lotes aos escravos, para que eles plantassem produtos de subsistência, consumindo-os como complementação das refeições ou vendendo-os. Com o pouco dinheiro, os escravos adquiriam roupas para uso aos domingos, cachaça ou fumo.

7. As condições de trabalho do escravo

As condições de trabalho eram as mais desumanas possíveis, porque os escravos não eram poupados do sol excessivo e da chuva, ou seja, os trabalhos continuavam independentemente da ação do tempo. Os únicos que tinham privilégio em relação a essa desumanidade eram os negros que exerciam as atividades domésticas, escolhidos por serem mais bonitos. A violência era legitimada. A coação física era o instrumento para o cumprimento da obrigação por parte dos escravos. Como forma de punição pelo não cumprimento de alguma ordem ou falta de produtividade, o negro era submetido ao castigo imoderado, sem nenhuma limitação. A forma de tratamento dos escravos revela que eles eram tratados como um objeto destinado à produção, e como objeto eles eram contabilizados.


8. Brevíssimas considerações sobre o imigrante no Brasil – substituição da mão-de-obra escrava pelo trabalho assalariado

O advento da libertação dos escravos, com liberdade para contratação com conseqüente compra e venda de mão-de-obra, e a vinda dos imigrantes para o Brasil, para trabalhar na lavoura e na indústria, com todos os fatos sociais da época, motivou o surgimento de normas jurídicas que regulamentassem a relação jurídica existente entre o vendedor e o comprador de mão-de-obra. Mesmo da abolição da escravatura, fazendeiros tentaram substituir a mão-de-obra escrava pelo trabalho assalariado de imigrantes. Alguns fazendeiros, temendo as medidas de abolição da escravatura e diante da escassez de escravos para o trabalho nas plantações de café, se organizaram para a busca de trabalhadores imigrantes que substituíssem o trabalho dos negros escravos.

Depois de 1850, tratou-se de orientar a imigração européia às cidades e às plantações de café. Em São Paulo, entre 1854 e 1886, imigrantes tomaram o lugar dos escravos no artesanato e no trabalho assalariado. (SINGER, 1988, p. 47)

As condições de vida dos imigrantes que vieram trabalhar no Brasil eram precárias. Estes chegavam ao Brasil endividados, uma vez que o fazendeiro que os contratava era quem custeava as despesas de transporte, e a dependência inicial os submetiam ao um trabalho análogo ao trabalho escravo. Sem alternativa, muitos imigrantes se submetiam à servidão temporária, mas não permanente. Tal fato deu causa à resistência dos imigrantes, a intervenção das autoridades consulares e ao abandono em massa das fazendas, o que fez com que os fazendeiros continuassem com o trabalho escravo.

No entanto, a mão-de-obra escrava começou a sofrer influência da atuação da Inglaterra, que combatia a escravidão e a exportação de escravos no Brasil. Os proprietários de escravos resistiam à abolição porque para eles o escravo era o meio de produção de riqueza Alguns abolicionistas argumentavam que os donos de escravos não precisavam mais imobilizar seu capital em escravos, pois deveriam liberar o capital, proporcionando a circulação do mesmo. A abolição da escravatura tendeu a resultar, na região açucareira, no pagamento de pequeno salário fixado pelo nível de subsistência prevalente, ficando os negros submetidos às mesmas condições de vida de quando escravos eram. Os escravos libertados que abandonavam o local em que trabalhavam tinham dificuldades para sobreviver e se deslocavam apenas de engenho para engenho. Alguns escravos urbanos exerciam o comércio de rua e ofícios, ou seja, não desempenhavam o trabalho no campo. Aos poucos o comércio de rua e os ofícios passaram a ser executados por escravos libertos que criavam associações religiosas ou recreativas.

Com a vinda dos imigrantes para trabalhar no Brasil, os ex-escravos que recebiam salário em troca do trabalho passaram a ter concorrentes, o que influenciou na ocupação dos postos de trabalho assalariado, excluindo parte dos ex-escravos da ocupação remunerada. A economia brasileira cresce na segunda metade do século XIX, sendo o comércio exterior o destaque desse crescimento e, no último quartel do século XIX, o trabalho assalariado passa a ter maior importância nessa economia. Há o aumento do coeficiente de exportação do café, mas não o aumento do salário, ou seja, o investimento não era no salário dos trabalhadores, mas no acréscimo da produtividade.

Informa KOVAL (1982) que até o ano de 1850 chegaram ao Brasil cerca de 20 mil imigrantes. Na segunda metade do século XIX, a imigração adquiriu proporções consideravelmente mais amplas, entre 1850 e 1872 chegaram ao país mais de 230 mil imigrantes. Apesar do surgimento do trabalho assalariado o trabalhador não era remunerado na proporção do seu trabalho e do lucro obtido com a força despendida e, com a abolição da escravatura, houve uma fase de transição, de escravo a operário.

Após 13 de maio de 1888, a migração de europeus, que não havia dado certo no Brasil, passou a surtir resultados positivos aos fazendeiros, que contavam com o Governo do Estado, notadamente do Estado de São Paulo, e o Governo Federal, que pagavam as despesas de viagens para a importação em massa de mão-de-obra. Os fazendeiros e imigrantes firmavam contrato na forma de colonato, o que possibilitou aos colonos, com o passar do tempo, o trabalho independente.

Este era um regime contratual em que o trabalhador e sua família ganhavam um salário em dinheiro pelo trato de determinado número de pés de café e um pedaço de solo para cultivar alimentos. Nos cafezais em formação, o colono tinha permissão de cultivar alimentos entre os pés de café. Esta produção de alimentos constituía uma importante fonte de rendimento não-salarial para o colono, o que lhe dava certa autonomia, permitindo a alguns reunir um pecúlio e se tornar, ao cabo de certo período, lavradores independentes. (SINGER, 1988, p.51)

Nesse contexto, muitos negros foram para as cidades e diante das suas condições tiveram que se submeter ao trabalho assalariado mais humilde, como a construção civil, o serviço doméstico, entre outros. Fatores raciais influenciavam negativamente na conquista de emprego, porque os negros competiam com os brancos europeus. IANNI (1987, p. 17) escreveu que “o imigrado considerava-se diferente e melhor que o escravo ou ex-escravo. Incorporou rapidamente os padrões discriminatórios dominantes na sociedade brasileira, apresentando-se, pois, privilegiado no mercado de trabalho” e SINGER (1988, p. 53) que “na competição com o emigrante europeu, que também se fixou nas cidades paulistas em grande número, o preconceito racial inferiorizou o negro.”

A naturalização dos imigrantes, em 1891, pela Constituição, no artigo 69, § 4.º, influenciou na criação do mercado de mão-de-obra, uma vez que todos se apresentassem na condição de cidadão brasileiros naturalizados, expandindo o mercado de trabalho. O trabalho começou a se desenvolver não só no campo, mas também no centro urbano e nas indústrias que iam aos poucos se formando, embora o trabalho tivesse passado a ser exercido com pagamento de salário, o que se pagava dava apenas para sobreviver. Não obstante, os trabalhadores necessitavam do trabalho.

9. Reflexões finais.

Tais aspectos históricos, analisados com os fáticos e jurídicos, possibilitam refletir sobre a relação de emprego na atualidade, seu enquadramento no ordenamento jurídico e a aplicação dessas normas na solução dos conflitos trabalhistas brasileiro, sem deixar de esquecer que no Brasil o Direito do Trabalho é um Direito novo , com grande concentração na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Decreto-lei 5.452, de 1.º de maio de 1943, que não apareceu do nada, como um milagre, mas é fruto de muita pressão social em busca de direitos e de muitas medidas por parte do governo para sufocar as lutas de classes.

Não há como negar que nas relações sociais o Direito do Trabalho tem importância expressiva. Analisando as fases do direito moderno, BELTRAN vê o Direito do Trabalho como “um dos acontecimentos mais marcantes da segunda fase dos direitos modernos”, esse jurista o Direito do Trabalho passou e vem passando por grande evolução, “ora marcada pelo crescimento, ora por fases consideradas de modernização, adaptação ou ‘flexibilização’, ou ainda, para alguns, de simples retrocesso” .(BELTRAN, 2001, p. 23).

Por isso, o ato de raciocinar, planejar, resolver problemas, abstrair idéias, compreender idéias e linguagens, aprender, ensinar, julgar, deve considerar os acontecimentos históricos, o surgimento e a função da norma jurídica, porque as notícias colacionadas demonstram que mesmo com as normas jurídicas as infrações ao sistema normativo permanecem, em total ofensa à dignidade da pessoa humana. Por isso, não é possível adequadamente compreender, aplicar, questionar e ensinar o Direito do Trabalho Brasileiro divorciado na realidade e da história do trabalho no Brasil.

O Autor: Renato Cassio Soares de Barros
Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar – com dissertação com o tema: “ENSINO DO DIREITO DO TRABALHO: Ensino positivado e sua perspectiva social.”. Especialista em Direito Processual Civil, pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação e Direito na Sociedade Brasileira Contemporânea”, da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Professor de Direito do Trabalho no Centro Universitário Central Paulista – UNICEP - Vice-Presidente da OAB São Carlos, SP.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BELTRAN, Ari Possidonio. Dilemas do trabalho e do emprego na atualidade. São Paulo: LTr, 2001.

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________. Os impactos da integração econômica do direito do trabalho: globalização e direitos sociais. São Paulo: LTr, 1998.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo:3.ª reimpressão. Companhia das Letras, 1992.

BRASIL, Decreto-Lei n.º 5.452, de 1.º de maio de 1943. Diário Oficial de União, Rio de Janeiro, 9 maio 1943.

DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, Trabalho e Emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. São Paulo: LTr, 2005.

_________. Democracia e justiça: sistema judicial e construção democrática no Brasil. São Paulo: LTr, 1993.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3.ed. São Paulo: Globo, 2001.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3.º ed. São Paulo: Ática, 1978.

FERRARI, Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro; FILHO, Ives Granda da Silva Martins. História do trabalho do direito do trabalho e da justiça do trabalho. 2.ed. São Paulo: LTr. 2002.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande
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